Dois tucanos


Antonio Domaneschi
Foto de 1975: arquivo da família.

Não lembro muitos detalhes da viagem, a não ser de um sol de outono, já fraco, algumas poucas cenas até São João Del Rei-MG e de outras ao chegar no Paraná. Eu me lembro da dor que sentíamos. 
Antonio Domaneschi, já aposentado, partia naquele 27 de abril de 1983 sem nos deixar, eternizado que está nas memórias de todos que com ele convivemos, ouvimos suas histórias e vimos suas obras.
Sobre suas atividades profissionais, sei muito pouco, exceto que foi lavrador, teve um pequeno comércio, trabalhou numa serraria e, pouco antes de se aposentar, numa loja de produtos relacionados a quadros e fotografias
Adorava uma pescaria, especialmente naqueles tempos em que a vida ainda era abundante nos pequenos rios da região de Cruzeiro do Oeste e Cianorte, de onde consigo reter minhas memórias. Bastava uma leve subida de temperatura, o vô partia para o portão na esperança de que algum filho, genro ou amigo caridoso estivesse a fim de companhia para uma pescaria. Quando encontrava alguém disposto, pegava a "tralha" e, no rio, chegava de mansinho, pisando com cuidado na margem para não "espantar" os peixes. Depois curtia seus momentos de reflexão e esperança. Pegar peixe não importava tanto.
Vô na serraria
Vô Nico, num período de trabalho em Cascavel-PR. Arquivo da família.
Uma vez o vô Tonico me chamou e me apresentou uma caixa de madeira, acredito que fabricada por ele mesmo, abriu uma fechadura rudimentar e mostrou vários e diferentes apitos, cada um disposto em uma repartição específica. Era como um porta-joias. Eram seus "pios" e explicou que eram usados para atrair pássaros, isso no tempo em que a caça fazia parte da rotina da roça. Em seguida, um a um, foi retirando, demonstrando os sons e nominando cada pássaro, como nambu (ou inhambu - clique aqui se quiser conferir no YouTube como é o som), macuco, jacu, e outros. 
 Fiquei maravilhado com a habilidade dele em cada imitação e tornou-se comum que nós netos pedíssemos que ele fizesse as imitações. Ele "piava", mas depois guardava com cuidado a caixa, longe das mãos inquietas dos netos, dos quais sou o mais velho. 
Toniquinho, como era chamado também, gostava de um café e tinha outras habilidades. Apreciava fotografia, fazia artesanatos, tocava um pouco de cavaquinho e pintava. 
Uma de suas obras artesanais hoje talvez causasse polêmica, pois consistia de uma cabeça de mulher entalhada em madeira. Negra, tinha os olhos bem desenhados e boca com os lábios carnudos, pintados de vermelho vivo. Para finalizar, o cabelo era de Bombril, que vez ou outra alguém pegava para utilizar na cozinha e lá ficava a pobre, momentaneamente careca Durante anos eu ia na casa dos meus avós e la estava ela, cada vez em lugar diferente.
Dedicou-se ainda à pintura e produziu vários quadros, especialmente com paisagens rurais e animais, dentre outros temas. 
 Eu tenho o orgulho de ter uma das pinturas comigo. Estava na posse da minha mãe desde que ele se foi e dela recebi agora, em maio de 2020. Uma tela pintada a óleo, com dois tucanos pousados num galho seco de árvore. Simples, mas reflete certamente as paisagens que ele admirava. Com base em alguns fatos, estimamos que a tela tenha sido pintada entre 1973 e, no máximo, 1980. Um tesouro de valor inestimável para todos nós.

Acervo particular.
 Acervo pessoal.
Existem outras pinturas e artesanatos na família, mas muitas obras ele mesmo doou e outras, lamentavelmente, se perderam com o passar desses longos anos.
Isso tudo me fez pensar que, embora um homem simples, o vô Tonico, descendente de italianos, deve ter recebido uma formação cultural bem razoável, embora a sensibilidade para a arte não dependa do conhecimento acadêmico.

Moço ainda. Arquivo da família.

Em "Varandas" (clique se quiser ler), contei aqui outras histórias da família em que falei do Vô Tonico, na casa em que ele viveu seus últimos dias. Naquela casa, ele pôs os últimos anos de sua vitalidade, arrumando uma coisa aqui e outra ali, mexendo no quintal e ainda disposto a uma pescaria. 
Que saudade de quando ele apertava meu nariz entre o polegar e o indicador e eu sabia que teria uns dias na sua companhia!

Comentários

Anônimo disse…
Admirável a forma que escreve,me sinto dentro da história. Família nosso bem maior.Isso me encanta. Não importa os caminhos que seguiremos,resgistre sempre suas memórias.Com certeza irá ajudar os pessoas e reviver momentos esquecidos.Segue....
Obrigado pela interação. Memórias eternizam a vida em nós.