Lições da "highway"





Ainda há pouco estávamos na rua jogando conversa fora após o futebol.  Eu, você, o Clever, o Marcão, toda a patota. Não tínhamos nada, só sonhos. Curtíamos Engenheiros do Hawaii  e ainda me lembro de você fazendo um trocadilho com a música e dando risada: " 'Sempre' 10, 'Sempre' 20, 'Sempre' 60, só pra ver até quando o motor aguenta..." Naqueles sonhos não víamos as tragédias da vida adulta. Nossas preocupações eram outras.  Também não imaginávamos que seríamos da mesma família.  
Durante um tempo nos tornamos distantes, pois os nossos objetivos imediatos divergiam. Cada um tem seu tempo de amadurecimento. O meu chegou mais cedo em alguns pontos. Talvez aí o motivo das discordâncias e das distâncias. Naturalmente, eu também não conseguia enxergar tudo. Não via que as influências da vida de casado também mexiam com você.
Ainda bem que Deus colocou em seu caminho pessoas que souberam mostrar os valores que, de fato, você deveria preservar. E você também "cresceu". Deixou de lado as coisas de jovem descompromissado e tornou-se um pai de família,  largando para trás o que não tinha importância. Os pais de nossas esposas passaram a reconhecê-lo cada vez mais  como um filho. Isso eu passei a admirar. Talvez no desejo incontido de sermos bons pais de família, de amarmos nossas esposas e nossos filhos, o fato é que nos reencontramos.
Deste ano, lembro-me  da visita do Marcão, após quase vinte anos, e você ajudando-me a pilotar a churrasqueira aqui de casa. Recordo-me ainda do aniversário de dois anos da Lorena, quando "fuçávamos" seus discos de vinil, ouvindo de ABBA a Milionário e José Rico, passando, é claro pelos Engenheiros.
Tem uma parte da vida, porém, sobre a qual não temos controle absoluto. E você se foi... No dia 07 de abril, curiosa e fatidicamente, acerelando à pé, e não de carro como na música, numa caminhada de início de noite, você se foi.  
Com sua partida, evidenciou-se que você trazia equilíbrio às opções de sua família. 
Contudo, da mesma forma que não aprendemos a dirigir bem se não aceitamos os ensinamentos da rodovia pela qual passamos, não vivemos, de fato, se não tiramos também lições da morte física. A sua confirmou o quanto você é importante para todos: seus pais, seus irmãos, suas cunhadas e cunhados e seus sobrinhos. Curioso como sua partida proporcionou a mim e ao João Pedro oportunidades para um diálogo entre pai e filho sobre a vida e a morte. Na sua infantil forma de demonstrar a saudade, meu filho até há poucos dias chorava a sua partida antes de dormir. Esse processo todo faz parte da vida e, ao contrário de muitos que escondem das crianças, eu e a Leila não ocultamos nada disso dele, afinal, mais cedo ou mais tarde a realidade da morte impor-se-á novamente e é perigoso postergar  tal contato. São Francisco de Assis aceitava tanto a morte que a chamava de irmã morte. De fato, dela não podemos nos esconder e ela é uma etapa da vida aqui na terra. Só podemos aceitá-la.
Fui ensinado a pensar que podemos ressuscitar as pessoas vivas, resgatado-as de todas as situações de sofrimento, mas gosto também de pensar que, se não podemos ressuscitar as que se foram, podemos impedir que elas morram definitivamente. Assim, cada vez que respeito sua memória, coloco-me ao lado de suas filhas ou encorajo meu próprio filho a lembrar-se de você, sei que impeço a definitividade de sua ausência e valorizo sua presença, que vai para muito além do estar fisicamente entre nós.
Cara, você ria de tudo!! Chegava a incomodar sua capacidade de brincar com as coisas e as pessoas. Outra grande lição. Obrigado. 
Nesse 02 de novembro, quero apenas lembrar com saudades de você, dos meus avós, dos outros parentes e todos os que conheci e já seguiram adiante. 
Um dia, na Graça do Pai, nos reencontraremos. Até.

Comentários