O enforcado, Paolo Rossi e a educação
Lagoa Dourada tinha também uma forte expressão religiosa, marcadamente católica. As procissões eram, e penso que ainda são, magníficas. Por ser uma cidade pequena, as ruas eram fechadas ao tráfego de veículo e bem limpas, especialmente para Corpus Christi, quando esplendorosos tapetes eram desenhados no chão. Isso também me proporcionou um aprendizado e tanto, numa passagem que não esqueci até hoje. Um dia, depois de limpas as ruas, o cidadão aqui, então menino de seus dez ou onze anos, brincando com outros, inocente e displicentemente lançou um papel de bala ou chiclete ao chão, quando ouvi, de uma das janelas por perto, a voz de uma velinha louca de raiva: "Muleque semducação! Não suje onNossinhôvaipassá... Some daqui!" Fui...
Nas redondezas rurais, muitas histórias eram geradas também. Certa vez, não me lembro o ano e nem os nomes de alguns personagens envolvidos no que vou contar, fui com meu pai, um outro senhor, pai de uma vizinha nossa, e seu filho caçula pescar numa lagoa. Estacionamos o carro numa estradinha rural e ele falou: "É logo ali. Vamos atravessar a cerca de arame". Do alto da sabedoria já adquirida nas Gerais, pensei: "Logo ali? Deve ser longe pra caramba..." Dito e feito. Começamos a andar e não parávamos mais. Ainda na trilha no meio do pasto, com o sol de início da tarde bem alto no céu, o velho apontou para uma árvore e disse para mim e seu filho: "Olhem, é a árvore do enforcado. Um homem se matou naquela árvore, pendurado numa corda. Dizem que, de vez em quando, ele ainda retorna para se lamentar". E lá fomos nós, sem dar muita bola, afinal, estávamos em pleno dia.
Depois de uma pescariazinha divertida, mas mixuruca, na qual pegamos só uns peixinhos chamados "cará", o sol se pôs. Enquanto arrumávamos as coisas, a noite caiu como um breu. O velho, para estimular nossa memória, alertou: "Ih, vamos ter que passar perto da árvore do enforcado". Depois do desconforto de lembrar disso, como o caminho era longo, eu e o moleque seguimos conversando, dando risada. Lá pelas tantas, do nada, surgiu um vulto enorme com uma capa de trás de uma árvore e pulou no meio de nós. Gritamos feito desesperados naquela fração de segundo e certamente ficamos brancos de medo. Foi o suficiente para o "vulto" rolar no chão de tanto rir. O infeliz do velho armou a coisa toda desde o início da tarde e, aproveitando-se de nossa distração ao longo do caminho, deu a volta e chegou na frente para aprontar. O susto foi grande, mas depois demos muitas risadas também.
Outra coisa da qual mineiro gostava era de futebol. Nas cidades onde morei, era impossível ficar em cima do muro. Atlético ou Cruzeiro. Ainda mais sendo criança, você tinha que optar. Eu, palmeirense, torcia para o Atlético (Galo), até porque foi uma época de muitas glórias atleticanas e o Paulistão nem chegava lá com força. Também por isso, a Copa do Mundo de 1982 foi um evento marcante. O pessoal da nossa rua e da "rua de baixo" fez um esforço danado para enfeitar as ruas. Colocamos bandeirolas e o "verde e amarelo" tomou conta de tudo. Fizemos tinta com "Xadrez" e pintamos o asfalto da "rua de baixo" com motivos da Copa. Eu tinha um gibi do Zé Carioca em que ele aparecia na capa imponente, segurando a Taça do Mundo da Fifa, e um vizinho nosso reproduziu a figura bem grande no asfalto, com cores vivas. Ficou magnífico. Ao som de "Voa Canarinho" (do lateral Júnior), embalados pelos chutes do mineiro (atleticano) Éder, os dribles de Zico e todo o conjunto daquele "timaço", cada jogo foi uma festa e envolvia muitas pessoas na garagem de um dos vizinhos, numa comemoração muito alegre a cada vitória. Com o avançar dos jogos, porém, e com a quase certeza da vitória, especialmente por bater a Seleção Argentina, os ânimos parecem ter esfriado e não foi possível um dia reunir as mesmas pessoas, passando cada um a acompanhar em sua própria casa. Curiosamente, naquele dia, o italiano Paolo Rossi, que parece ter aproveitado a ocasião, acabou de vez com a esperança do "Tetra". Pensa num piá decepcionado...
Foi no início daquele ano da Copa do Mundo que ingressei na "5ª Série" e no mundo dos adolescentes e jovens da Escola Estadual Abeilard Pereira - EEAP. Deixara de ser simplesmente "criança", ao menos no que se refere a algumas obrigações, porque continuava brincando na rua, jogando bola no pátio do Angelina Medrado, e outras brincadeiras de então.
A nova escola era muito diferente. Havia uma diretora, cujo nome não me recordo, que ficava todo o dia na entrada. Ela ou alguém sob suas ordens, geralmente um senhor de nome Bosco
Na EEAP, tive alguns professores e professoras que marcaram minha formação. Tínhamos uma professora de inglês (português também, se não me engano) de nome Cecília, que tinha amizade com minha mãe, com um enorme carisma com os alunos. Ela sabia identificar-se conosco e nos motivava a querer saber cada vez mais. As aulas eram divertidas. Quando saí de Lagoa Dourada, ao final do ano letivo de 1983, fora designada, merecidamente, Diretora.
Um outro professor muito exigente era o de história, de nome Joaquim. Tinha um vozeirão e fazia a chamada tão velozmente que, não raro, um aluno perdia o número e tinha que implorar por presença. Outra característica sua que nos forçava a superar nossos limites: aplicava avaliação oral e tínhamos que responder na frente de todos os colegas, o que nos fazia tremer. Mas era boa gente. Procurava ensinar lições de civilidade e de valores, algumas das quais jamais esqueci.
Como já mencionei antes, o desfile cívico de Sete de Setembro sempre foi muito bem articulado em Lagoa Dourada. Em 1983, a EEAP convidou um grupo seleto de alunos e alunas para apresentar, devidamente ensaiado, uma marcha no estilo militar, para dar uma incrementada nas festividades da Pátria. Eu estava dentro, o que me deixou muito feliz, afinal, tinha esperança de um dia seguir carreira, inspirado que era pelo meu tio, o agora Coronel Domaneschi, do Corpo de Bombeiros do Paraná. Foram vários ensaios e ajustes. No dia esperado, com os passeios (calçadas, em linguajar "paranaense") lotados, lá fomos nós, cheios de orgulho e expectativa, de roupa branca e olhar compenetrado. Em muitos momentos, a bateria silenciava e ouvia-se apenas o barulho da "tropa" de alunos. Ao final, valeu o empenho de todos e a comunidade aprovou. Até hoje, pelo que pesquisei, a Escola promove com zelo os desfiles.
Desfile Cívico, Sete de Setembro de 1983. |
Desfile Cívico, Sete de Setembro de 1983. |
Em relação a Minas, quem sabe depois conto outros "causos" que vivi por lá, do contrário, isso acaba virando novela, coisa que eu não aprecio.
Comentários
Até mais.
Eu sou a Rose que você citou no seu blog.Achei muito legal.Eu não tenho uma memória tão boa quanto a sua, mas uma amiga nossa, a Tininha, lembra?? Ela me faz lembrar de nossa infância tão maravilhosa e agora sei quem é você.Sou professora da Escola Angelina Medrado, leciono geografia.Sou casada e tenho duas filhas Lethicia(19 anos) e Luiza (8 anos). A Lethicia já faz Engenharia na UFSJ.Estou velha,rsrs
com uma filha na faculdade.Quanto aos amigos citados, estão todos bem. Os lugares também sofreram poucas mudanças, apesar de Lagoa Dourada ter evoluído bastante.Espero que você e sua famíla estejam bem. Um grande abraço,
Rose
Acho que o ano em que estudamos juntos no Angelina Medrado foi muito mais divertido! Aquele espaço enorme para o recreio, aula de educação física e fora do horário escolar também.
Para mim, a Copa de 82 ficou na história. Não curto futebol, nem os jogos da copa. Mas, todo aquele envolvimento de 82 era realmente contagiane!
Eu me casei novamente e estou morando no interior de SP, Jacareí. Tenho apenas um filho de 12 anos. O Almir continua em LD e vai ser papai pela primeira vez. Está muito eufórico com a expectativa. O Vanderlei tem 03 filhos maravilhosos e competentes como o pai. Eu já lecionei para todos eles. Foi muito gratificante lecionar para os filhos de um colega de escola! O nome do Gonó é Luiz Cláudio. Ainda mora em LD e não se casou.
Eu dei uma lida no seu blog e gostei muito. Sua família é linda! Sua mãe não mudou nada! Parece que o tempo não passou para ela. Você também continua com a mesma feição, mas o Luciano, quanta diferença! Lembra da gincana em que ele cantou Plunct Plact Zum (Raul Seixas)? Nossa, ficamos iradas! Nós cantamos Super fantástico do Balão Mágico e ele nos venceu! Não concordávamos com o resultado, pois achávamos que tinha sido manipulado. Coisas de criança! Não querem apenas competir, mas vencer!
Obrigada pela sua iniciativa, foi um enorme prazer relembrar daquela época através de sua lembranças tão bem descritas neste texto!
Vamos continuar mantendo contato! (Skipe: luludec2000/ msn: luludec2000@hotmail.com/e-mail: carvalhodlourdes@yahoo.com.br)
Um grande abraço para você e toda sua família. Fiquem com Deus!
Lulude
Eu sou a filha da Rose que faz engenharia rsrs. A Lethícia. Só que minha mãe arredendou minha idade, vou fazer 19 agora dia 17.. Ela tem essa mania de me colocar mais velha mesmo.. kkk
Achei seu blog mto interessante e é essa a Lagoa que vejo até hoje. A minha geração teve uma infância bem parecida com a sua. Eu não saia da rua.. Mas acredito que infelzimente hoje a tecnologia tem mudado isso, não vejo as crianças, principalmente minha irmã jogando queimanda, pé de casinha, desligando relógio da casa dos outros...
Bom, mais uma vez parebéns pelo blog. Vou segui-lo aqui.
Um abraço!
lilianemoreira32@yahoo.com.br