O velho soldado

"16. tunc Herodes videns quoniam inlusus esset a magis iratus est valde et mittens occidit omnes pueros qui erant in Bethleem et in omnibus finibus ejus a bimatu et infra secundum tempus quod exquisierat a magis"  
(Evangelium secundum Matthaeum, 2)

 Não sabia que doença tinha, mas tinha certeza de que seu fim estava próximo. Ouvira muitos falarem do homem que estava passando, de seus feitos, de sua capacidade de descobrir o que havia na cabeça das pessoas e, especialmente, de fazer cada um sentir-se bem e em paz consigo sem importar-se com o passado. É claro, diziam também que ele curava qualquer doença. Por isso tudo, lamentava não ter ido atrás dele antes.  
Agora, vendo-o carregando aquela cruz com o auxílio daquele outro homem, sentia ainda mais fortes as dores, que apenas davam trégua à noite enquanto dormia. O alívio proporcionado pelas poucas horas de sono era invariavelmente interrompido por aquele pesadelo, tão real que podia sentir outra vez a viscosidade do sangue em sua mão direita, tal como há quase 34 anos atrás, numa missão que aparentemente seria de rotina.  
Ele havia se alistado no exército romano com 17 anos. Aprendera técnicas de batalha, de defesa e também de ataque que lhe ajudaram a matar alguns homens antes. O exércio também ensinou que a deserção implicaria em ser condenado a morrer queimado em fogo bem lento. Nada, entretanto, preparava para o que seria aquela missão. 
Era ainda muito jovem naquela ocasião. O sol havia acabado de se pôr quando sua tropa recebeu a ordem de deslocamento. O que fariam seria revelado apenas posteriormente. Todos ficaram preocupados, mas a excitação com o mistério encarregou-se de fazer o tempo passar. Apenas quando chegaram aos arredores da cidade de Belém é que o Comandante, inicialmente titubeante, deu as instruções precisas sobre o que deveriam fazer. Num primeiro momento alguns quiseram recuar, mas, sabendo que tal desobediência teria consequências por demais graves, todos foram adiante, logo ao primeiro raiar do sol. 
Ao descer de seu cavalo, certificou-se várias vezes de que o animal havia sido bem amarrado, talvez para adiar um pouco mais o que deveria fazer, já que os gritos começavam a ser ouvidos ao longe. Em frente à porta, ele e o outro soldado que o acompanhava não precisaram de muito esforço para concluírem o arrombamento. Seu companheiro já na entrada foi obrigado a afastar o jovem que tentara impedir o avanço de ambos, o que o deixou encarregado do ato principal, como temia. Respirou fundo, dirigiu-se até o canto onde a jovem mulher se escondia, virou-a, procurando não pensar e tomou-lhe a criança dos braços, fazendo-se surdo aos berros de ambos. Ali mesmo, receoso de não conseguir finalizar sua missão em outro local diante da resistência dos moradores, deu um golpe preciso com a espada, silenciando o choro do menino, o qual não deveria ter mais do que 8 ou 9 meses de vida. Espantou-se ao ver como o sangue, apesar do pouco tamanho da criança, conseguiu chegar tão rapidamente às suas mãos.
Ao sair da residência, partiu com seu companheiro rumo à rua e de longe ouviu o berro do  Comandante apontando para uma mulher que corria na direção oposta à dele, já bem afastada. Nem precisou prestar atenção às palavras, pois sabia o que deveria fazer. Saltando sobre o cavalo, galopou eficazmente rumo ao seu destino e segurou a jovem pelas costas, descendo quase que simultaneamente do animal. Pôde perceber que ela gritava enquanto cravava as unhas em seu rosto e soltava a criança no solo. O soco que desferiu, contudo, foi suficiente para derrubar a pobre mãe, afastando-a ainda mais da cria indefesa, que jazia de bruços. A espada reluziu ao alto antes de vir abaixo e cravar-se nas costas no inocente menino. No retorno, viu de relance quando a mulher se arrastou e rolou em prantos sobre o filho morto. 
Ele fazia força para segurar o próprio vômito quando, para seu alívio, o Comandante deu a ordem de retirada. Atordoado, viu os inúmeros os soldados retornando e teve certeza de que a missão dada por Herodes fora concluída com êxito.
Aquele dia nunca mais saiu de sua mente. Nem as inúmeras batalhas posteriores, nem as constantes bebedeiras, nem as incontáveis mulheres em todos aqueles anos, nada conseguiu apagar de seu coração o amargor causado por aqueles atos. Quantas vezes pensou em tirar a própria vida, afinal, por que fizeram aquilo? Que tipo de rei nasceria num lugar simples, sem as pompas dos palácios e que mereceria tamanha crueldade? Além disso, como seriam hoje aquelas inocentes crianças, se estivessem vivas? Seus pensamentos divagavam enquanto via aquele vulto ensanguentado indo adiante e sentia as dores aumentarem. Agora era tarde de mais. 
Conhecia muito bem os costumes judaicos e a crueldade dos soldados romanos. O homem tinha apenas mais umas poucas horas de sofrimento e depois descansaria. E ele, quanto tempo mais teria? Alguns dias, meses? Na pior das hipóteses, talvez um ano, o que seria por demais difícil de aguentar. Aos cinquenta e poucos anos de idade, afastado do exército há um bom tempo, já tinha vivido razoavelmente para um homem naquela região, o que só prolongou seu sofrimento. Seria um castigo por terem exterminado aquelas pobres crianças? Não tinha a resposta, mas acreditava que sua sorte era pior que a do homem que desaparecia com a cruz ao longe. Suas condições físicas não permitiam seguir a multidão que gritava logo atrás: o caminho era íngreme e as dores estavam muito fortes. Tomou vagarosamente o caminho de volta, tentando, mais uma vez, esquecer suas lembranças.

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