Atingidos por um raio

Quando eu e minha família nos mudamos para Resende Costa-MG, nos idos de 1979, levamos junto um filhotinho de pequinês, de pelagem preta, que, não sei por qual razão, chamamos de Quilpe. Como a viagem era longa, o bichinho chegou a entrar escondido conosco em hotéis. Só meus pais sabem o trabalho que deu, pois eu e meu irmão, é claro, dormíamos sempre que possível. 
Fomos morar em um sobrado e o coitado do bicho, sem quintal, foi condenado a viver entre o terraço e nossos móveis. Não foi educado a fazer suas necessidades fisiológicas em lugar adequado e, principalmente quando saíamos, deixava produtos orgânicos sólidos e líquidos por toda a casa. Mamãe queria morrer (ou matar). A gota d'água foi uma peste de pulga que não soubemos tratar, afinal, naquela época não se tinha tanta informação como hoje. O fato é que não teve jeito, ele foi doado e eu e meu irmão tivemos que nos acostumar à ausência de cachorros pelo resto de nossa infância. E seguimos adiante.
Curioso é que a Leila também não teve experiências lá muito felizes com cães na infância, mas sempre gostou muito dos bichinhos.
Lembro-me um dia, há uns três anos, na casa da vó da Leila, Dona Ester, em que o Henrique me dizia que no início não gostava lá muito de ter cachorros, mas que, por causa da Luiza, sua mulher, tia da Leila, teve que aceitar os bichinhos, enquanto eu argumentava que não teria cachorros em casa e que enrolaria as crianças até desistirem. Ele recordou ainda que impôs uma série de regras e restrições no início e que elas resultaram em nada. Ao final, dando uma gargalhada, profetizou: "Não dá para evitar. Mais cedo ou mais tarde, vocês terão que ceder...e ele (o animalzinho) vai lamber a sua boca!"
Mantive posição durante um tempo. Dizia às crianças que um cãozinho atrapalharia eventuais viagens (como se viajássemos muito...), que daria gastos e um trabalho danado...
Penso que aí ficou um resquício da frustração de minha infância, quando precisamos doar nosso bichinho.
Passaram-se os anos e a luta foi ficando difícil. Por mais que eu tentasse fugir do assunto, lá vinham a Isabela e o João Pedro argumentando "Fulano tem!", "Vamos cuidar", "Ajudaremos" e outras afirmações do gênero que os pais, no seu íntimo, sabem que dificilmente serão integralmente cumpridas.
Minha mãe, surpreendentemente, incentivou a amizade do João Pedro com o cachorrinho da Marlene, uma amiga nossa, levando meu moleque para se divertir, vez ou outra, com o cãozinho, de nome Dinho, da raça shih-tzu
Uma vez, assistimos ao filme Marley e Eu. O João Pedro chorava e eu chorava por ver meu filho chorar.
A Isabela começou a frequentar a casa da Isadora, uma amiguinha da escola, cuja família tem três cachorros. E a pressão foi aumentando...
Eu e a Leila vínhamos conversando muito ao longo dos últimos dois anos sobre o assunto e, ao final, percebemos que fomos derrotados. Além disso, sentimos que poderia ser uma ajuda para as crianças desenvolverem o senso de responsabilidade e de afetividade e obterem outros benefícios que, diziam, trazem os animais de estimação.
Dia desses, a Leila telefonou-me e disse ter recebido a ligação de um pet shop sobre um filhote shih-tzu, macho, como o João Pedro e a Isabela queriam. Fomos apenas eu e ela, vimos o bichinho num sábado e confesso que simpatizei com o danado, embora ainda ecoasse uma voz no meu interior dizendo: "Isso vai dar um trabalho danado!".
Como o próprio vendedor orientou a não trazer o animal, para que ele pudesse ser melhor observado no final de semana, fechamos a negociação apenas na segunda-feira, para buscarmos na terça. 
Até aí não havíamos dito nada às crianças, mas a Leila não aguentou e vazou a informação para a Isabela, mantendo o mistério para o João Pedro. 
No dia combinado, o bichinho nos esperava com banho tomado e perfume passado. Como era a terceira vez que nos via, já demonstrou sinais de reconhecimento com o abanar típico dos caninos felizes. Algo aflorava dentro de mim. 
Atrasei a entrada no serviço só para ver a cara das crianças. Valeu cada minuto que tive que repor posteriormente. A Isabela ria e afagava. O João Pedro ficou estático, pensando que era mais um animal de pelúcia, até que a "ficha caiu". Depois, foi só festa.
E o danadinho do animal começou a dar sinais mais fortes de que ia com a minha cara... Eu chegava do trabalho ou da academia e lá vinha o danado abanando o rabinho e cheirando-me enquanto eu acariciava seu pelo.
Então, passamos pelas preocupações das primeiras duas noites, especialmente porque, para nossa sorte, foram uns dos momentos mais frios desse ano em Maringá.
Na sexta, após a terceira noite conosco, ele amanheceu meio acabrunhado, não comeu e seus produtos fisiológicos estavam meio diferentes. Pronto, teve que ir ao veterinário, que passou orientações para a Leila de como administrar o remédio, uma vez que eu estava em horário de serviço.  Mas não deu jeito, apesar das outras orientações recebidas do veterinário posteriormente por telefone, não conseguimos lidar com a situação, que se agravou, e tivemos que sair correndo às 23 horas para internar nosso amiguinho na Clínica Veterinária São Francisco de Assis. Lá fomos recebidos pelo médico veterinário Dr. Fábio Ricardo Kotaka, que, mostrando excelente preparo para lidar com seres humanos em primeiro lugar, nos acalmou enquanto examinava nosso amiguinho. Pude perceber na conversa que aquele profissional compreendia perfeitamente a extensão de tudo à sua volta, o que abrangia não só um animalzinho doente, mas uma família desorientada. Estávamos no lugar certo. Assim, após administrar uma injeção, conversou conosco e nos deu valiosas orientações. Em seguida, definiu que o melhor era que o filhote passasse a noite sob seus cuidados para que fosse feito um exame de sangue no sábado pela manhã. No caminho de volta, percebi o quanto aquilo tudo tinha transformado nossa vida. Em poucas palavras: cortou-nos o coração deixá-lo para trás.
Para encurtar a história, ao meio-dia de sábado, nosso cãozinho teve alta e recebi o treinamento adequado para administrar os quatro (isso mesmo quatro) remédios, via seringa, na boca. Aos poucos eu e a Leila fomos pegando a forma mais adequada de fazer isso e ele foi melhorando.
Partindo da alegria inicial e passando pelas preocupações com a doença e os cuidados com a correta administração dos remédios, pude perceber que, não só meus filhos, mas todos nós, havíamos sido atingidos por um raio, que, ao tempo em que exige de nós cuidados, nos devolve uma energia alegre e companheira. Na convivência de poucos dias, não posso negar, apeguei-me tanto quanto as crianças ao bichinho, ao ponto de brincarem comigo no trabalho dizendo que, para quem não queria cachorros em casa, em tão pouco tempo já tenho até foto no computador. Encarei numa boa. 
Talvez eu esteja reconciliando aquela parte de mim que ficara incompleta na infância e, assim, evoluindo um pouco mais...
Ah, o nome dele? Bolt.




Comentários

Liliana Sobieray disse…
Ai que bom que vc cedeu!!! Venceu o trauma hehehehe Ele é lindo e o sorriso das crianças recompensador... Parabéns
Marcos Boggo disse…
Meu amigo, devo confessar que não tive lá boas experiências com esse tal bichinho que chamamos de cachorro, cachorrinho, dog e por aí vai...
Acredite. Ainda nos primeiros meses de vida, fui engatinhando até a casinha do nosso querido e lindo pastor alemão (enorme), e sem que meus pais percebessem puxei a marmita do bendito bem na hora do rango..rss Resultado: tomei uma mordida e trago comigo até hoje de forma bem visível 4 pontos bem no meio da testa..rss
Anos mais tarde, por volta dos meus 6 ou 7 anos, esse mesmo bendito acabou de trincar minha clavícula, quando eu segurava sua corrente até que meu pai pregasse uma tábua na sua casinha. O bicho deu um arrancão tão forte que não teve jeito. Resultado: 30 dias engessado até o pescoço e pra piorar estávamos no verão...rss
E por fim, aos 15 anos trabalhando numa empresa de peças agrícolas, tomei uma mordida do cão de guarda recém chegado para zelar pelo pátio "um fila" que parecia mais um boi de tão enorme que era, nessa eu nasci de novo, ele veio na jugular mais pegou, graças a Deus só meu ombro. Resultado: 11 Pontos no ombro direito.
Mais admito, que apesar tudo, gosto muito destes bonitinhos. E estou ensaiando para comprar um desses para ter em casa, meu 1º problema no momento é espaço (casa geminada), o 2º é tempo, pois não paro em casa...mais estou criando coragem, pois sem o bem e a alegria que eles podem nos trazer.
Anônimo disse…
Ola!
Gostei de sua história, eu tenho 3, duas fêmeas e um macho que é filhote, que espero poder castrar para não aumentar a família, sei bem o trabalho que dá, eu gosto muito dos bichinhos,mas 3 eu acho um pouco demais, mas meu marido não se importa, sei como fico nervosa com o filhote, pois é muito bagunceiro, acaba com tudo que vê pela frente.
fora isso eu gosto deles traz muita alegria em casa.Penso que para crianças é necessario ter animais de estimação, embora em casa já aconteceu uma perda de uma cachirrinha que era o nosso chamego, sofremos muito, eu chorei no telefone quando a veterinária ligou dizendo que não tinha mais jeito, ela foi brincar com um sapo, a gente não sabia o que fazer, ela foi internada mas não deu tempo de salvar, o nome dela era Fadinha, sentimos saudade dela até hoje. ( os nossos agora chama( Budia e Negrita, são irmãs, e o cabeção o filhote). Um grande abraço e que deus abençoe seu animalzinho, agora da família. Val
tania disse…
heehe Amigo, o danadinho te pegou de jeito heim, mas é assim mesmo, isso é só o começo, tbm tive animal de estimação um gato o francisco, era como um filho, vc imagina a familia indo passar 15 dias na praia e eu euzinha tendo de ficar para cuidar do francisco heheheheh, mas fiquei numa boa, só a perda dele foi muito triste, pois ele era muito apegado a minha mãe, e quando ela faleceu no dia 14/12/95, ele morreu no dia 27/12/95, segundo os vizinhos ele se jogou embaixo de um carro.Mas eu e a sônia temos ótimas lembranças dele, vc vai ver como é maravilhoso, parabéns e vcs sejam muito amigos.